Thursday, July 12, 2007

RELIGIAO e CIDADANIA NO SEC. XXI



André Malraux é muito citado: “O século XXI será religioso, ou não será (existirá)”? Porém, parece que o célebre autor francês teria negado a autoria de tal sentença.
Há citações repetidas de frases que até nunca foram ditas. Mesmo de filmes, como Casablanca. Importa mais o conteúdo de um dito que afinal não foi dito que o facto de o ter sido. A difusão de um tal tópico é garantia da sua importância. E é sempre interessante dissecar algumas dessas máximas. Vale a pena pensar nesta, seja ela de quem for.
Antes de mais, a palavra “religioso” pode estar aí em sentido muito lato: no de toda a espiritualidade, mesmo laica, e até da experiência estética, que é para-religiosa, e que tão cara era ao autor do Museu Imaginário.
Depois, caberia discorrer sobre essas filosofias da História feitas de inevitabilidade. Que a História tem, necessariamente, que caminhar para o comunismo (como profetizava o materialismo histórico), o capitalismo (Henri Lepage) ou para a religião, ou para outro lado ou coisa qualquer, pode estar na fé e na esperança dos que o proclamam. Mas estará isso escrito num “grande livro da História”? Que predestinação conseguiram ler os áugures?
E contudo, há indícios, “sinais dos tempos”. E são esses indícios que permitem não prever, mas supor. Podem ser complicados os sinais: Perante os ventos que se semeiam, pensamos nas tempestades que se podem colher. Olhando os céus (e as nuvens que vão encobrindo o sol), como os velhos jardineiros “planetas”, podemos entender quiçá melhor o sentido dessa profecia.
Não é que o Mundo todo se vá converter às religiões, e muito menos a uma única religião. O tema religioso encontrava-se em algumas partes do Mundo – desde logo em Portugal – felizmente aplacado numa tolerância ou coexistência, até mesmo numa convivência pacífica entre religiosos e não religiosos, e entre religiosidades de vários estilos e credos. Mesmo havendo pessoas religiosas “não praticantes” e “praticantes” não religiosos... Sinal, aliás de pluralismo, sempre muito saudável nesta matéria. Afora conhecidas bolsas de conflito (como na Irlanda do Norte), em que a religião é em grande medida politicamente instrumentalizada e enraizada na desigualdade social, havia alguma paz, feita de partilha de territórios, também. A estabilidade dessa partilha (até numa mesma sociedade) era garantia de convivência.
Ora o que pode suceder é que a religião passe excessivamente para a ordem do dia da polémica e do agonismo social. O proselitismo (febre de crescer e converter) e as intolerâncias, a hiper-sensibilidade de religiosos e não religiosos (desde logo à critica e ao humor; mas até à História e à reflexão filosófica), as pretensões a privilégios estaduais por parte de alguns, ou o exagerado entendimento de direitos de outros, podem conduzir a uma nova “questão religiosa”, que tão maus resultados sempre deu, no passado. E não apenas derivada do “batido” fundamentalismo islâmico. Mas de outros fundamentalismos, nem sempre nomeados e apercebidos: desde logo, os de seitas religiosas e de derivas sectárias.
Pois uma das bússolas mais seguras para que o honnête homme, independentemente das suas concepções espirituais (que são, antes de mais, do seu foro íntimo) se possa esclarecidamente orientar num Mundo que começa a regredir simultaneamente nos valores das verdadeiras religiosidade, espiritualidade e laicidade, é estudar, comparar, e verificar que, independentemente de muitas adjacências e cores locais, os Homens, de muitas crenças e de crenças outras que em religiões, podem dar-se as mãos e compreender-se. Sem se agredirem, e sem quererem impor ao vizinho uma divindade pintada das suas cores, ou ausência dela. Sem proselitismo, pois.
É algo que a educação, desde a Família, mas também na Escola, precisa de fazer. Educar para os Direitos Humanos é hoje, muito, educar para a diferença cultural. Ora a religião é sócio-antropologicamente tida como o mais marcante traço de diversidade (e identidade) cultural. Mais uma razão para Estado e Escola serem laicos, porque comuns a todos: não simples território desta ou daquela convicção, ainda que maioritária numa concreta escola ou Estado.
Importa muito a ponderação destes fenómenos, à luz precisamente da linguagem que, nas nossas repúblicas, nos é em comum dada, a professos de todas as religiões e de religião nenhuma: a “religião” do Direito. Religação geral e comum, que deve ser do Homem com a sua Humanidade.

Paulo Ferreira da Cunha, in "O Primeiro de Janeiro"

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