Thursday, December 21, 2006

Entrevista ao "Justiça & Cidadania"


Entrevista de Paulo Ferreira da Cunha ao Justiça & Cidadania .

( http://www.oprimeirodejaneiro.pt/?op=artigo&sec=d645920e395fedad7bbbed0eca3fe2e0&subsec=&id=43cf850888896a58cc17636c8fe3b261 E também no sítio do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público:

http://www.smmp.pt/detail.asp?idM=168&ref=901&lng=1)

Paulo Ferreira da Cunha quer esta restrição consagrada na revisão da Lei Fundamental

Necessário moderar recursos para o Tribunal Constitucional

Paulo Ferreira da Cunha deixa o alerta

"Não devia confundir-se o Tribunal Constitucional com uma quarta instância judicial"

O envio de recursos para o Tribunal Constitucional deve ser moderado. Esta restrição à possibilidade de apelo deveria ser conseguida no quadro de uma revisão Constitucional, feita segundo um acordo parlamentar de maioria de dois terços.

Deveria a figura feminina que personifica a Justiça ter, para além dos olhos vendados, também os ouvidos tapados para não ouvir aquilo que de mal dela se diz?
[Risos] É hábito referirmo-nos à venda nos olhos da Justiça com sinónimo de tratamento imparcial. Inicialmente, porém, a figura da justiça era vendada para dar a entender, criticamente, que não sabia por onde ia. A Justiça teria os olhos do corpo vendados para que os olhos da alma estivessem bem abertos: ou seja, os ouvidos. A nossa justiça precisa de ter os ouvidos abertos e de recuperar um símbolo antigo, que existiu em Itália, na Holanda e na Alemanha: uma sua representação com duas cabeças. Uma vendada; a outra de os olhos bem abertos. É preciso que a justiça trate todos por igual, mas também que não tropece. O dramaturgo e jurista António José da Silva, conhecido por «o judeu», de quem se celebrou no ano passado os 300 anos do nascimento, dizia que a justiça é vesga e a venda serve para ocultar o defeito. Ora bem, temos de tirar a venda para saber se é ou não vesga. E depois colocá-la de novo.

Faz sentido afirmar que a Justiça está a transformar-se numa espécie de reserva moral da sociedade?
É uma espécie de suplência moral. Já não se reverenciam as instâncias intermédias na Sociedade e hoje tudo desagua no Direito, que tem de fazer o serviço da religião, da moral, da cortesia...Há uma grande litigiosidade porque a sociedade não tem válvulas de escape. E, ao mesmo tempo o Direito é chamado a resolver coisas que antigamente não tinha que resolver, os juristas perderam em qualidade humanística. Culpa do sistema de ensino. Actualmente há muitos juristas, mas, infelizmente, do ponto de vista cultural e da inserção no mundo, há os que deixam muito a desejar.

A Declaração de Bolonha vai facilitar ou agravar ainda mais esse panorama?
Ainda não se sabe. Uma coisa é a boa intenção da Declaração de Bolonha. Outra é a maneira como tem sido posta em prática, que é diferente de país para país, de momento para momento e, sobretudo, de cabeça para cabeça. O que contraria o princípio fundador de uma certa harmonização. Em Portugal, aparentemente, o que o Ministério decidiu foi não decidir quanto, por exemplo, à duração dos cursos de Direito. Mas há coisas desde já positivas: em alguns casos, está a pensar-se, por exemplo, em colocar nos diplomas as actividades extracurriculares que cada aluno desenvolve. O grande problema é: o tempo para fazer os cursos a sério é muito pouco. Sobretudo, em Portugal, onde há um tempo próprio, quase uma respiração nacional, que é positiva porque é de maturação das coisas. Os cursos muito breves brigam com o nosso espírito, que já António Sérgio, com graça, considerava ser de "introdução geral". Precisamos dessas introduções para ganhar altura... e depois voar.

É desejável que o tempo do Direito tente coadunar-se com o tempo social, inexoravelmente mais lento?
Não. O Direito é mais conservador, mais lento. E deve continuar assim. A Justiça tem de ter um «delay» em relação ao ritmo social. Por vezes, é preciso esperar, para ponderar, para decidir sem paixão. Contudo, seria útil que o juiz tivesse, por exemplo, alguns meios extraordinários de acelerar os processos - que poderiam depois ser apreciados em sede de recurso. E, acima de tudo, que se confiasse mais no juiz, que este nunca tivesse "as mãos atadas". Compreende-se que há demoras escandalosas; por isso, tem de ser alcançado um equilíbrio. Ou seja: acelerar os procedimentos e manter as garantias de defesa.

Mas não é esse procedimento que multas vezes beneficia o infractor?!
[Pausa] Infelizmente, os infractores podem ser beneficiados no sistema actual de justiça. Porque ele se preocupa com as garantias e a humanização: e a equipa dos infractores aproveita das regras limpas do jogo. E desejável que deixem de aproveitar dos calcanhares de Aquiles do sistema. Como fazê-lo? Não existe uma receita mágica. Há contudo passos que podem ser dados. Por exemplo: o instituto do abuso do Direito é algo que deveria ser mais aplicado, assim como a litigância de má fé. Podemos conformarmo-nos com a interposição de um processo por alguém que o faz "de mau", e sem razão nenhuma, só para aborrecer o vizinho? Esse querelador é um criminoso.

Não considera que existe uma capacidade excessiva de recurso para as várias instâncias judiciais?
Pois, isso sim. O princípio do recurso é importante. Mas não deveria, por exemplo, confundir-se o Tribunal Constitucional com uma quarta instância judicial. Infelizmente, em Portugal, acontece isso. Chega-se a uma determinada altura e recorre-se para o Tribunal Constitucional. O que nem sempre é correcto. Não é essa a sua função. Só que, esperando um milagre, ou para ganhar tempo, há quem apele para esse Olimpo... Mas não há milagres.

A que se deve essa prática?
Apesar dos 30 anos da nova Constituição democrática, ainda temos, em geral, uma débil cultura constitucional. Está a melhorar muito, mas estamos longe de outros. Em países como o Brasil, o Canadá, ou os Estados Unidos, já há muitas instituições e advogados que não interpõem processos sem consultar um especialista em Direito Constitucional. Por vezes, basta uma questão desta natureza para resolver uma causa à partida. Deveríamos levar mais a sério a Constituição. Quando isso suceder, veremos surgir, sem dúvida, uma espécie de «advogados de advogados», consultores de matéria constitucional. Os departamentos jurídicos de muitas instâncias (estou a pensar, por exemplo, em Câmaras, desde logo) pedirão pareceres como o médico que manda o paciente tirar umas análises. Mesmo por rotina. Falta-nos isso.

Onde poderá levar esse caminho?
Embora eu seja muito favorável à estabilidade constitucional, a médio prazo seria muito interessante uma revisão constitucional que afirmasse mais o papel da Constituição no nosso sistema. Não é que não seja hoje clara a sua prevalência. Mas os juristas de amanhã precisam de tudo muito explicito. É preciso dar mais efectividade à Constituição. E é preciso também uma maior sensibilidade constitucional por parte dos juristas e advogados. Num sistema em que as matérias constitucionais fossem mais curadas nas primeira e segunda instância, não como caso excepcional, mas como
verificação normal, o Tribunal Constitucional passaria a ser (mal comparando) uma espécie de Supremo Tribunal de justiça ou Administrativo para as coisas Constitucionais. Embora sempre com as prerrogativas especiais que tem que ter, no cume da pirâmide do Direito.

Com que horizonte temporal?
Não gosto de pressas neste campo. Com tempo, porque é preciso pensar bem. E uma coisa para mais de meia dúzia de anos. Depende sempre das políticas. E depois algumas coisas poderiam quiçá ser conseguidas com simples reformas judiciárias. Claro que, nessa altura, ouvir-se-iam sempre alguns clamar pelo habitual "E lobo, é lobo": que, nesta matéria se traduz por "é inconstitucional". Por isso, antes da reforma judiciária, e à cautela, deveria garantir-se a sua plena constitucionalidade na própria Constituição. Chame-lhe um plano constitucional-judiciário integrado, se quisermos um chavão.

Essa revisão da Constituição deveria ser feita segundo acordo parlamentar de maioria de dois terços?
[Pausa] Mais que revisão constitucional é precisa uma revolução das mentalidades relativamente ao Direito Constitucional. Mas claro, evidentemente, todas as revisões constitucionais têm que ser, antes de mais, constitucionais, e respeitar as regras constitucionalmente estabelecidas para tal. Esta é só uma intuição e contribuição pessoal. As reformas para serem bem feitas têm de ter quem as apoie. A mensagem sobre a importância do Direito Constitucional e Constitucionalização do nosso Direito - o nosso Direito deveria de passar todo pelo crivo da Lei Fundamental - precisa antes de mais de apoio nas Faculdades. Acho que se ensina muito pouco Direito Constitucional, e muito concentrado: por isso, há matérias que são, necessariamente sacrificadas.

E isso tem custos de formação futura?
Receio que estas coisas sejam pouco motivadoras para a maioria das pessoas e que, as sim possam não ser muito populares. Entretanto, tremo quando, a cada passo, se diz que isto ou aquilo seria inconstitucional. E de uma ligeireza! Vivemos num défice Constitucional por um lado, e numa mania da inconstitucionalidade, por outro. Se daqui a 15 anos, porque eu sou uma pessoa de longo prazo, eu visse que a cultura constitucional já estava suficientemente amadurecida e que se podia, de facto, dar essa dimensão... A revisão constitucional seria apenas o sustentáculo de apoio de um novo sistema. Tal obrigaria a uma alteração da organização judiciária no sentido de dotar os tribunais de instâncias preparadas. Além do mais, e por exemplo, junto de cada juiz deveria haver um corpo de consultores especializados... Mas é coisa para quando for época de vacas menos magras, naturalmente.

O que implicaria também uma aposta ao nível da formação?
Formação a vários níveis. Os tribunais precisam de um corpo de especialistas (criminólogos, sociólogos, psicólogos, etc.) em particular em tribunais especializados como os Criminais, de Família, ou de Trabalho. Um corpo de peritos, de consultores, que soubessem dos assuntos. Não basta saber as leis; é preciso saber a realidade social, que por vezes é muito complexa.

Como observou a celebração do Pacto para a Justiça entre o Governo e o maior partido da oposição?
[Pausa] É um bom princípio e, como tal, deve ser aprofundado e ver-se como vai funcionar na prática. Representa, julgo, apenas um primeiro passo. A Justiça não deveria ser alvo de um excessivo debate político-partidário. A ideia mesma de Justiça implica algum distanciamento em relação à mutável sorte política. Em todo o caso, seria certamente desejável que outros partidos se associassem ao pacto da justiça. Até porque se ganha socialmente em alargar para fora do "bloco central" a determinação destas coisas muito importantes. Se fosse possível, seria de alargar a base de apoio das grandes reformas. Mas compreendo que não possa ser, porque às vezes as franjas só subsistem porque são diferentes e não consensuais.

Uma medida que no seu entender seja fundamental para melhorar a Justiça?
A recolha do máximo possível de legislação avulsa em códigos. E algo de urgente, mas não pode ser feito com pressa. Deveria haver uma espécie de "carro-vassoura" da Justiça. Uma comissão permanente cuja sua função fosse verificar a legislação que está realmente em vigor. E promover a sua actualização, integrando o mais possível em códigos. A informática já dá uma enorme ajuda. Mas temos que ir desbravando, de catana em punho, a selva da floresta do Direito. E atirar para o lixo o que é inútil. Não são precisas muitas leis, mas leis boas.

E far-se-ia Isso à bolina da revisão Constitucional que propõe?
Não. Isto pode ser feito já. Agora. Depois, é preciso uma política de longo prazo para a justiça.

Durante o último encontro da Federação das Ordens de Advogados da Europa, que teve lugar no Porto, foi defendido um código de conduta comum para os advogados europeus no exercício da actividade. Parece-lhe uma proposta interessante?
É desejável. A necessidade de liberdade de profissão e estabelecimento em todo o território da União Europeia impõe essas regras conjuntas, a meu ver. Mas, mais uma vez, tudo tem que resultar de muito diálogo e troca de experiências.

Colóquios

Direito Constitucional e Fundamentos do Direito

Mais de 20 de especialistas em Direito vão estar reunidos na próxima quinta-feira e no dia sete de Dezembro no 111 e IV colóquios internacionais do Instituto jurídico-Interdisciplinar, sob a égide do Direito Constitucional e Fundamentos do Direito. Este encontro integra-se nas comemorações de mais um aniversário da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e associando-se às comemorações dos 30 anos da Constituição da República Portuguesa. A esse propósito, vão marcar presença individualidades corno Jorge Miranda, um dos autores da Lei Fundamental e catedrático da Universidade de Lisboa, e Gomes Canutilho, catedrático da Universidade de Coimbra. Na agenda das intervenções está também José Adelino Maltez, do Instituto de Ciências Sociais da universidade 7.écnica de Lisboa e defensor da deslocalizaçào da Assembleia da República para o Porto. E ainda Nelson Saldanha, filósofo do Direito da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil "Este colóquio é muito centrado naquilo que os estrangeiros, em particular os brasileiros, nos vêm trazer, onde os portugueses são mais anfitriões", afirmou ao JUSTIÇA & CIDADANIA Paulo Ferreira da Cunha, ideólogo do programa. "Vai ser mais para trocar experiências, já que o Brasil tem uma cultura jurídica muito parecida com a nossa", sintetizou o professor universitário.

Perfil

Paulo Ferreira da Cunha

Aos 47 anos, Paulo Ferreira da Cunha é professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, onde fundou e é director do Instituto Jurídico Interdisciplinar. O currículo deste advogado, filósofo e historiador impressiona tanto pela extensão como pela qualidade. É director dos Cadernos Electrónicos Antígona (www.antigona.web.pt), co-director dos Cadernos Interdisciplinares Luso-Brasileiros, de São Paulo, Investigador do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa e do Centro de Estudos de Pensamento Português da Universidade Católica, membro da secção de Direito da Academia Skepsis, de Semiótica e Direito e fundador do Centro de Estudos Medievais Oriente-Ocidente, na Universidade de São Paulo, entre outras funções que desempenha. Quando interrogado sobre o tempo necessário para todas estas actividades, Paulo Ferreira da Cunha diz, em jeito de justificação, que trabalha com gosto e que se diverte com aquilo que faz. Só as burocracias universitárias o cansam. Autor de mais de 60 livros e centenas de artigos em revistas especializadas em Direito, este professor catedrático da Universidade do Porto é ainda membro da Académie Européene de "Théorie du Droit, de Bruxelas. Para além de tudo isto, Paulo Ferreira da Cunha tem ainda tempo para dedicar à sétima arte e à música. Escritos regulares podem ser consultados em www.oprimeirodejaneiro.pt onde escreve, semanalmente, às quintas-feiras.

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